A viagem dos governadores provinciais ao Brasil: formação ou turismo institucional? – Correio da Kianda
1. Contexto e a formação de governadores no Brasil
Recentemente, sete governadores provinciais angolanos deslocaram-se ao Brasil para participar numa formação em Governação Territorial Estratégica, numa iniciativa do Ministério da Administração do Território (MAT), em cooperação com o Governo brasileiro.
O programa, que visa reforçar as competências em gestão pública e liderança estratégica, tem o mérito de promover o intercâmbio internacional e a partilha de boas práticas. Contudo, revela também um problema estrutural na gestão da formação dos quadros públicos angolanos: a ausência de uma estratégia coordenada e institucionalmente centralizada.
O acto, embora louvável na aparência, expõe fragilidades profundas na execução da Estratégia Nacional de Formação de Quadros (ENFQ) e na afirmação do papel da Escola Nacional de Administração e Políticas Públicas (ENAPP) como órgão central de planeamento e certificação da formação do Estado.
2. A coerência institucional como princípio da boa governação
Segundo Peter Drucker (1999), “a eficácia das organizações decorre menos das boas intenções e mais da coerência com que as políticas e as práticas se alinham aos seus objectivos estratégicos”.
Aplicando este princípio à governação pública, não basta enviar dirigentes para o exterior; é necessário garantir que tais formações estejam integradas num plano nacional de capacitação coerente, mensurável e sustentável.
Cada acto de formação de dirigentes públicos deve estar articulado com uma política de Estado, com metas claras e acompanhamento posterior, sob pena de se transformar num exercício de prestígio sem impacto real na administração pública.
A ENAPP foi criada precisamente para desempenhar esse papel de coerência institucional. Ela deve ser a entidade responsável pela planificação, coordenação e certificação das formações estratégicas de alto nível, garantindo a unidade metodológica e pedagógica do Estado.
3. O papel central da ENAPP na formação dos dirigentes públicos
A ENAPP não é apenas uma escola. É o cérebro estratégico da governação pública angolana. A sua missão é assegurar que a formação dos quadros públicos responda às necessidades do Estado e que cada investimento em capacitação gere retorno institucional.
Como defende Henry Mintzberg (2009), “a formação de líderes públicos exige reflexão contextual e prática institucional, e não apenas transferência técnica de conhecimento”. A formação de governadores provinciais deve, por isso, ser orientada por um modelo que combine teoria, prática e inovação pública, dentro de um sistema nacional de aprendizagem contínua liderado pela ENAPP.
Permitir que cada ministério ou instituição promova formações avulsas, sem coordenação nem enquadramento legal, conduz a duplicações, desperdícios e violações da Estratégia Nacional de Formação de Quadros, além de criar espaço para contratos subfaturados e acordos de conveniência.
4. A articulação necessária entre o sector público e o sector privado
Um sistema de formação pública eficaz deve equilibrar centralização estratégica e descentralização operacional. A formação estratégica, voltada à liderança, à governação e à gestão macro do Estado, deve permanecer sob a coordenação da ENAPP. Já as formações técnicas, locais e operacionais podem ser executadas por entidades privadas credenciadas pelo INEFOP (Instituto Nacional de Emprego e Formação Profissional).
De acordo com Kaplan e Norton (2004), “a governação moderna é construída sobre redes colaborativas que integram competências estatais e privadas na criação de valor público”. Assim, é perfeitamente possível e desejável que a ENAPP actue em parceria com consultoras privadas e centros de formação locais, desde que exista regulação, qualidade e transparência.
Esse modelo assegura uma divisão clara de responsabilidades: à ENAPP cabe o planeamento e a formação estratégica; ao mercado credenciado, a execução das formações operacionais e técnicas; e ao Estado, o papel de regulador e avaliador de resultados.
5. O risco da dispersão e a fragilidade da soberania formativa
Actualmente, observa-se uma tendência perigosa: ministérios, administrações e empresas públicas promovem formações isoladas, frequentemente sem enquadramento legal ou coerência pedagógica. Essa dispersão compromete a eficiência, gera gastos públicos redundantes e enfraquece a autoridade técnica da ENAPP.
Como alerta Carlos Lopes (2016), “a dependência intelectual e formativa é uma forma subtil de subdesenvolvimento”. Se Angola continua a depender de programas externos para formar os seus próprios dirigentes, nunca consolidará a soberania formativa e intelectual necessária para a modernização do Estado.
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A formação de governadores no exterior deve ser complementar, e não substitutiva, ao sistema nacional. Ela deve seguir um plano nacional de capacitação de dirigentes, com etapas, metas e relatórios de impacto, e não apenas eventos pontuais de representação institucional.
6. A formação como política pública de desenvolvimento
A formação de quadros públicos não é um luxo, mas uma política pública estruturante. Segundo Idalberto Chiavenato (2014), “as instituições sólidas constroem-se pela capacidade de transformar a aprendizagem individual em competência organizacional”.
A aprendizagem dos governadores e dirigentes deve resultar em mudanças concretas na gestão territorial, na planificação e na eficiência administrativa. Caso contrário, a formação torna-se apenas simbólica e decorativa.
Peter Senge (2006) reforça esta ideia ao afirmar que “as nações que aprendem são aquelas que transformam o conhecimento em política pública e o capital humano em motor do desenvolvimento”.
Logo, a governação territorial estratégica de Angola deve ser alimentada por um sistema de aprendizagem institucional permanente, onde cada formação sirva para consolidar políticas e melhorar os serviços públicos.
7. A ética e a transparência na gestão da formação pública
O académico José Octávio Serra Van-Dúnem (2012) alerta que “a reforma do Estado em África depende menos da criação de novas leis e mais da formação ética, técnica e moral dos servidores públicos”.
Infelizmente, as práticas actuais mostram sinais de desvio dessa visão. A multiplicação de formações sem supervisão, com contratos de consultoria subfaturados, coloca em risco a integridade das finanças públicas e compromete a legitimidade da governação.
A formação pública deve ser ética, transparente e orientada para resultados, com relatórios de impacto e auditoria pedagógica. A ENAPP deve ser o garante dessa ética, ao monitorar a execução, o conteúdo e os resultados de todas as formações estratégicas do Estado.
8. Por um novo modelo de governação da formação pública
É imperioso que Angola adopte um Plano Nacional de Formação Estratégica do Estado (PNFEE), coordenado pela ENAPP e supervisionado pelo Ministério da Administração Pública, Trabalho e Segurança Social (MAPTSS), com o envolvimento do INEFOP e das universidades públicas.
Esse plano deveria definir as prioridades nacionais de capacitação dos dirigentes, estabelecer critérios de parceria internacional e avaliação de impacto, criar um Fundo Nacional de Capacitação Pública destinado a financiar formações estratégicas sob controlo e auditoria estatal e estimular a criação de um Banco Nacional de Competências, integrando dados sobre todos os quadros formados e as áreas críticas de carência formativa.
Com um modelo assim, o país ganharia coerência, transparência e eficiência, evitando a dispersão de recursos e garantindo retorno institucional real.
9. Conclusão: da formação de governadores à reforma do Estado
O envio de governadores provinciais ao Brasil pode até representar uma boa intenção, mas sem enquadramento estratégico e coordenação nacional transforma-se numa oportunidade perdida.
O verdadeiro desafio é construir uma política de formação pública soberana, estruturada e eficiente, onde a ENAPP assuma o seu papel como centro de excelência da governação e da liderança pública angolana.
A boa governação começa na formação. Um Estado que não controla o seu próprio processo de aprendizagem perde o comando da sua evolução. Por isso, fortalecer a ENAPP, respeitar a ENFQ e regulamentar o mercado de formação pública são passos essenciais para garantir a sustentabilidade do Estado e a qualidade da administração pública angolana.
Como sintetiza Drucker (1999), “a liderança eficaz é menos uma questão de carisma e mais de propósito institucional e aprendizagem contínua”.
Angola precisa, mais do que nunca, de líderes formados com propósito, visão e responsabilidade pública. Essa formação deve nascer dentro do país, sob a direcção da ENAPP e com o selo da soberania formativa nacional.
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